Inspiração de viagem para ler no avião. (publicados na Revista INDICO da LAM, Moçambique).
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Planície seca
Não. Na minha cabeça não acontece nada. Não há pensamentos que se organizem, medos que surjam, desejos que tomem forma. Nada. a brisa é boa. Não há cheiros a invadir-me as narinas, nem os sons se sobrepõem nos ouvidos. Nada, ou quase nada, apenas a visão grande e afirmativa das pedras. Este lugar é grande para mim, para o meu corpo. Desenharam um miradouro e construíram as mesas e os chapéus, sim, conforta que haja aqui algo feito à minha medida. A natureza é… demasiada.
Olho o horizonte. A luz vai mudando as cores do Canyon, suavemente vejo os cinzas, os azuis, os quase violeta, esverdeados tons acastanham na base, perto de onde houve em tempos a água do rio peixe. Cheguei aqui pela estrada de gravilha, e os ouvidos descansam do restolhar contínuo dos pneus nas pedras britadas. Olho o fish river Canyon, o segundo maior do mundo.
Areia. Não há outro ser aqui, a areia avançou, cheia de personalidade invasora devorou as casas, engoliu as ruas, invadiu os espaços mais íntimos do homem – os hospitais, os fogões, as banheiras. Os restos de vida estão assim, arenosos, macios e ásperos nos caprichos das dunas que os ventos criam. Nas areias que escondiam diamantes aqui foram abandonadas as casas. Aqui, nas cidades fantasma perto de Luderitz, não vive ninguém, vivem as memórias dos ambiciosos garimpeiros das pedras especiais, das mais duras, das mais brilhantes, das mais raras.
A estrada de gravilha continua ligando as localidades da grande planície deserta.
Na beira da estrada, encavalitados nas dunas pedregosas acenam as kokerboom, as árvores cacto, as resistentes.
Na beira da estrada caminham lentamente, de cabeça caída, os cavalos selvagens, os de origem misteriosa, os sobreviventes. Não sabemos de onde vêm, sabemos apenas que são poucos, que caminham poupando as forças, que são livres.
Claro que me olham de entre os grãos os escorpiões, as cobras, os lagartos, os seres do falsamente desabitado deserto. Eu gosto. Gosto de avançar assim, a imaginar a vida nas pedras, a ver os movimentos imperceptíveis nos grãos.
Namíbia é deserto e água. Deserto que acaba na costa, água que seca nas areias fatais. Costa dos esqueletos é isso – a morte certa. Nevoeiros e rochas enganam os marinheiros e pontilham a areia salgada de carcaças de navios.
E as cidades da costa. Como é que o calor de Namib se esgota assim nas águas frias de um atlântico povoado de pinguins e focas… eu não sei.
As cidades da costa, Swakopmund, Luderitz… Como é que a viagem nos leva assim a uma Alemanha perdida no tempo, encontrada na arquitectura das casas, nos “r” guturais das gentes, nas cervejarias!, nos ventos gelados do ar… não sei.
Não sei se os teus olhos se perdem na imensidão e vagueiam sem parar, não aceitando a imobilidade da paisagem, insistindo em procurar vida, em ver variações, em inventar miragens.
Não sei se te sentes meio ser meio ar no vermelho Namib, meio ser meio sal nos vlei brancos e estéreis, povoados apenas de negras árvores mortas.
Não sei se tens a atracção do abismo que te faz avançar mesmo que os pés se queimem, a boca peça água, o cabelo se crispe, a pele seque.
Não sei se o teu olhar pára no desenho sinuoso, o teu nariz sente a aridez que entra e na tua boca o ar não humedece.
Não sei. Não sei se a visão da morte te faz sentir vivo. Se a esterilidade te alimenta a imaginação e se a cada visão de um ser – como a de um Kudu que aparece entre as dunas - homenageias a vida e a sobrevivência.
Não sei se o tens – o fascínio do deserto.
Namíbia – vasta planície seca.
É disto que te falo. De quilómetros de areia, de pedras, de fascinante e belíssima aridez.
O deserto é isso – a visão da morte. Bela. Inspiradora.
Ainda ontem me falavam sobre a chatice que é viajar e de como temos de fazer sacrifícios para chegar ao destino. Estas pessoas não conversavam, monologavam, porque para mim o caminho é tudo, o destino é nada. Quase nada.
Viajo na Namíbia e os caminhos são longos, todos longos.
Mas não sei. Não sei se paras na imagem do nómada elogiando-lhe a liberdade. Na da criança tingida de ocre sonhando outras realidades. Não sei se te fascinam as casas de lama e te perdes no mato com prazer. Não sei se a vida como não imaginamos existir te choca ou te envolve. Não sei se quando olhas uma Himba nos olhos inevitavelmente lhe admiras na beleza as cores, os olhos, os seios descobertos.
Não sei se a surpreendente verdura da vegetação do norte do país te refresca, não sei se as discussões no mercado, feitas em português da vizinha Angola te adoçam as tardes.
Não sei se nisto das viagens és como eu. Não sei se te entregas às horas com a delicia de serem as únicas, as últimas antes do avião partir.
Não sei se viajas para levar estas coisas contigo, não sei se te toco, não sei se entendes.
Mas se sim, se ainda que seja por um minuto, em golpe fugaz, te sentes assim, vai à planície seca – é vasta, é para ti.
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Joana,
ResponderEliminarQue texto! Sem favor, é soberbo.
O caminho se faz caminhando, a estrada, a vida, o destino.África aqui tão perto e a dialéctica do deserto.O tudo e nada.A fertilidade e a escassez.
Este deserto é fértil.Parabéns.
Adriano
Obrigada Adriano. é um prazer sentir q as palavras tocam assim :)
ResponderEliminarum beijinho